O testamento digital e a proteção da personalidade post mortem: entre privacidade, memória e liberdade existencial
DOI:
https://doi.org/10.18378/rbfh.v14i2.11459Palavras-chave:
Direito civil; Sucessão digital; Direitos da personalidade; Autodeterminação informativa; Personalidade post mortem.Resumo
O presente artigo propõe uma reflexão jurídica sobre o testamento digital como instrumento legítimo de manifestação da vontade no contexto pós-morte, com especial enfoque na proteção da personalidade, da privacidade e da liberdade existencial do indivíduo. Diante da intensificação da vida digital e da consolidação de bens e dados imateriais com valor patrimonial, afetivo e simbólico, observa-se uma lacuna normativa no ordenamento jurídico brasileiro no que se refere à destinação post mortem desses ativos. O estudo analisa essa omissão legislativa à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da autonomia privada e da proteção de dados pessoais, destacando os riscos de desrespeito à memória, à intimidade e à vontade do falecido. Para isso, a pesquisa adota metodologia qualitativa, de cunho jurídico-dogmático, com base em revisão bibliográfica nacional e estrangeira, jurisprudência relevante e análise normativa, especialmente da Constituição Federal de 1988 e da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018). O trabalho diferencia o testamento digital da herança digital, destacando sua natureza como negócio jurídico unilateral, personalíssimo e voltado à autodeterminação informativa, com potencial para regulamentar o destino de perfis em redes sociais, conteúdos armazenados em nuvem, senhas, criptoativos e produções intelectuais digitais. Outrossim, examina experiências legislativas e jurisprudenciais de países como França, Alemanha, Estados Unidos e Argentina, extraindo modelos regulatórios que poderiam ser adaptados ao contexto brasileiro. Como contribuição teórica, defende-se que o testamento digital deve ser reconhecido como forma válida de expressão da liberdade existencial e da autodeterminação post mortem, inclusive com respaldo notarial, até que sobrevenha legislação específica.
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